tampouco
nos conteúdos escolares, referências negras positivas e legítimas.
“Isso provocou um estigma ainda pior: a solidão existencial que, naquele
momento, não me deixava contar nem comigo mesma”, diz. “A solidão da
mulher negra é, portanto, parte indissociável da formação da nossa
identidade que o racismo nos impõe. Durante a juventude e vida adulta
esta solidão é alimentada pelo desprezo daqueles com quem almejamos
estabelecer um relacionamento amoroso, já que passamos a ser vistas
somente pelo nosso sexo expropriado e hipersexualizado, principalmente
através da mídia.”
Em
contrapartida, a imagem da mulher branca, segundo Pacheco, está
vinculada a “um comportamento mais condizente com uma expectativa de
gênero mais tradicional, aquela que seria ideal para casar, para se
manter um relacionamento, para ser mãe, enquanto a mulher negra não
caberia nessa representação.” Tal privilégio tem nítida ligação com o
padrão de beleza branco difundido como ideal em nossa sociedade, e que
não apenas não contempla como marginaliza as características estéticas
negras. Sob esse prisma, pode-se dizer que a mulher negra sofre
opressões somadas: machismo e racismo.
Estudiosos
das relações interraciais no Brasil desde os anos de 1930 discutem
também o casamento entre homens negros e mulheres brancas como
estratégia de mobilidade social. “(…) a mulher, além de propiciar um
dado acesso social ao homem negro, funcionaria como uma possibilidade de
escamoteamento de seu padrão fenotípico, conferindo invisibilidade à
sua cor”, considera Alves em Virou Regra?. De acordo com a
autora, um dos principais méritos de seu trabalho é ter provado que essa
prática não ocorre apenas com homens negros que já ascenderam
socialmente, como consequência desse movimento – a exemplo dos jogadores
de futebol negros, que famosos e endinheirados, frequentemente
constituem família com mulheres brancas –, mas se dá em praticamente
todos os estratos sociais. Para comprovar essa tese, a pesquisadora
visitou diversos espaços da cidade de São Paulo, nas periferias e no
centro – teatros, casas de espetáculos, supermercados, maternidades,
entre outros – e observou a proporção de casais inter e intraraciais
nesses locais.
Diante
desses símbolos tão fortes e difundidos em nossa sociedade, é impossível
dizer que escolhas do campo afetivo e sexual sejam mera questão de
gosto pessoal, plenamente desconectado do universo social em que o
indivíduo está inserido. “Na relação com o outro, o desejo de
envolvimento afetivo em busca do prazer é permeado pelos valores e
ideais estabelecidos pelo contexto social. A manifestação do desejo e o
estabelecimento ou não de vínculos amorosos são também determinados por
concepções advindas de uma visão machista e racista”, atesta a
professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Elisabete Aperecida
Pinto, em sua tese de Doutorado Sexualidade na identidade da mulher negra a partir da diáspora africana: o caso do Brasil.
“É o que
Sueli Carneiro já falou: nós, feministas negras, não estamos querendo
controlar o relacionamento de ninguém. Nós queremos problematizar,
porque é algo que tem nos atingido”, argumenta Pacheco. “O racismo é uma
ideologia, uma crença que exclui. E não exclui só do mercado de
trabalho, da educação, do campo do poder político; essas exclusões
influenciam muito na hora da escolha [afetiva].”
“Sinto
uma falta enorme de negros famosos que tenham uma defesa da causa negra
nos espaços que ocupam na mídia. Mesmo no caso daqueles que fazem de seu
trabalho uma forma de levantar nossa bandeira, percebo que na prática
as coisas ainda se voltam para o previsível, ou seja, cedem ao padrão
social de ter uma loira do lado”, observa Eliane Oiveira. “Muitos podem
dizer que é uma questão de gosto, mas nós somos socialmente moldados,
dessa forma, nosso gosto não é isento de manipulação ou imposição do que
é belo, bom, seguro e desejável. Ora, se sofremos ainda hoje com a
herança escravagista de que negra é para cama e não para o casamento,
como pensar que o homem negro também não reproduz esse tipo de
pensamento sobre ela quando o que mais vemos são eles se casando com as
brancas?”, questiona.
Embora a
palavra “solidão” seja normalmente associada a sentidos negativos, a
professora da UNEB conta que, nos depoimentos que colheu, o termo foi
sendo ressignificado – as mulheres negras, como protagonistas de sua
própria história, transformaram sua dor em força. “O sentimento de
solidão se traduziu em sofrimento, choro, desilusões amorosas e
decepções. Mas, apesar desses processos de exclusão social,
discriminação étnica e social, essas mulheres se empoderaram, muitas
delas superaram desigualdades fundamentais – a questão da sobrevivência,
por exemplo, social e econômica –, tornando-se chefes de família,
criando seus filhos sozinhas e sem parceiros”, relata. “Há mulheres que
se tornaram grandes lideranças do movimento social negro e alcançaram
prestígio a ponto de se transformarem em lideranças de grande expressão
nacional e internacional e ocupar grandes cargos políticos dentro da
sociedade brasileira. E há mulheres que, por outro lado, se empoderaram
através do trabalho, da ascensão social e de uma percepção com relação a
essas desigualdades.”

Contra
a imposição do padrão de beleza branco e pela valorização da estética
negra, mulheres negras realizaram, em julho, a Marcha do Orgulho Crespo
(Foto: Marcha do Orgulho Crespo 2015)
Consequências psicológicas
O
preterimento e a solidão afetiva que atingem as mulheres negras podem
causar a elas grande sofrimento psicológico e, por serem baseadas em
valores racistas, podem gerar ainda o adoecimento físico. É o que
explica a psicóloga Maitê Lourenço, também neuropsicóloga pelo Centro de
Diagnóstico Neuropsicológico da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e colaboradora do Grupo de Trabalho de Psicologia e Relações
Raciais do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. “Dentro do
processo cognitivo, palavras, gestos e ações são captados e processados
pelo cérebro, formando assim a concepção daquela mulher sobre si mesma
de uma forma deturpada”, avalia. Ela salienta que o quadro não se limita
às mulheres heterossexuais – lésbicas e bissexuais também enfrentam
esse fenômeno social, bem como as transexuais.
Segundo a
neuropsicóloga, adjetivos pejorativos, como “feia”, “macaca” ou frases
ditas por familiares, colegas e outras pessoas como “ninguém vai te
querer assim” fazem parte do contexto diário das mulheres negras,
gerando sentimentos de menos valia, baixa autoestima e introspecção. Com
isso, pela violência do racismo, há possibilidade de que a depressão,
ansiedade e outras doenças crônicas, como asma e fibromialgia, acometam
essas mulheres.
“A
humilhação social também é um dos sofrimentos psíquicos causados pela
solidão da mulher negra”, pontua Lourenço. “Essa mulher sente-se
humilhada por perceber que não corresponde ao que é esperado para sua
idade, classe social, escolaridade e ambiente familiar. Timidez
excessiva, irritabilidade, ansiedade intensa, hipertensão, depressão,
obesidade, uso abusivo de álcool e outras drogas também são
consequências, dentre muitas outras, do processo vivido por estas
mulheres”, destaca.
Clélia
Prestes, mestre e doutoranda em Psicologia Social pela USP e psicóloga
do Instituto AMMA Psiquê e Negritude, também discorre sobre as
implicações que a solidão afetiva pode acarretar para a autoestima das
mulheres negras. “Desde o nascimento e ao longo do processo identitário,
a autoestima é influenciada pelos referenciais coletivos de beleza, nos
quais as mulheres negras praticamente não estão representadas, apesar
da maioria da população brasileira ser negra. Como resultado, no
imaginário social e em concepções pessoais, pensamentos e sentimentos
que tratam a diversidade com hierarquia de valores, prejudicando
drasticamente a forma como mulheres negras são vistas e,
consequentemente, sua autoestima e relações afetivas.”
Em sua
atuação profissional, Maitê Lourenço atende mulheres que relatam o quão
difícil é o estado de solidão, pois muitas vivem suas vidas inteiras de
maneira solitária. “No passado não muito distante de muitas famílias,
assim como a minha, essas mulheres permaneceram cuidando das famílias de
outras mulheres – brancas – que tinham em seus lares maridos e filhos. E
por causa do machismo, patriarcado e do capitalismo, essas mulheres
tiveram que ficar distantes de seus familiares por morarem nas casas
onde trabalhavam, privando-as assim de também de construir seus lares e
manter maior contato com outras pessoas, já que não puderam estudar,
viajar e etc”, ressalta.
De acordo
com a psicóloga, a necessidade de fugir desse quadro social e evitar
uma vida solitária também torna as mulheres negras vulneráveis a
relacionamentos abusivos. “A própria violência doméstica também pode
fazer parte das estatísticas para pontuar o que acontece com as mulheres
negras, pois muitas acabam se submetendo a relacionamentos abusivos
para não permanecerem sós.”
No
entendimento de Clélia Prestes, embora tantas pessoas sofram com as
consequências do racismo, a “psicologia tem sido omissa e conivente” com
relação a ele, “na medida em que não o enfrenta”. “Ao desconsiderar os
marcadores sociais da diferença como raça, gênero, orientação sexual,
geração, classe, entre outros, trata como universal seres que são
diversos, desconsiderando suas especificidades e impondo de forma
hegemônica características particulares de grupos dominantes.”
Para
Lourenço, a mídia tem uma grande responsabilidade na perpetuação dos
estigmas advindos de concepções racistas. “Venho acompanhando alguns
comerciais, novelas e séries brasileiras e o que mais se vê são mulheres
negras em funções subalternas e, quando há núcleo familiar para ela, há
no máximo filhos, a mãe dessa mulher ou um irmão. O fato da mulher
negra ser representada desta forma impacta também na identificação de
meninas, mulheres e das outras pessoas de que a mulher negra tem somente
esse lugar a ocupar, gerando assim sofrimento psíquico e mais
obstáculos, que arduamente as mulheres negras vêm tratando de transpor”.
Embora
a solidão afetiva tenha, muitas vezes, consequências devastadoras para a
vida das mulheres negras brasileiras, Prestes destaca que elas “não
ficam apenas expostas passivamente a quadros de vulnerabilidade e
solidão, mas, enquanto reagem às adversidades e resistem às opressões,
acabam se fortalecendo individual e coletivamente”. “Em minha clínica,
nas atuações pelo Instituto AMMA Psique e Negritude, no ativismo
(movimento negro e feminismo negro) e na pesquisa, pude observar a
importância da identificação positiva e das redes de mulheres negras
para diminuir os efeitos e mudar o quadro de solidão, potencializando
processos de resistência, superação e resiliência”, conta.
(Ilustração de capa: Monica Stewart)