Por Nayhara Almeida de
Sousa
Atualmente o que a
maioria das pessoas entende por comunidade quilombola está muito distante da
realidade. O que é usualmente entendido por comunidade remanescente quilombola se
remete à definição utilizada no período colonial brasileiro, mais exatamente àquela do século XVIII, para a qual quilombo
era “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte
despovoada ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA,
1981: p.16). E no estado de Mato Grosso do Sul
não seria diferente, apesar de ter mais de 21 comunidades reconhecidas pela
Fundação Cultural Palmares, ainda não tem avanços significativos na questão de
reconhecimento das comunidades quilombolas como grupos sociais e, portanto, com
direitos.
Com a publicação do
decreto de 4.887/2003 temos a regularização de todo o procedimento que efetiva a titulação das
terras, além de uma redefinição do conceito de comunidade quilombola,
diferenciando-se daquela antiga que era marcada pela colonização, e passando
agora a ser compreendida através da auto determinação dos povos. Conforme o artigo
2º do Decreto,
consideram-se
remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins deste Decreto, os grupos
étnico-raciais, seguindo critérios de autoafirmação, com a trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais especificas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida
(BRASIL, 2008).
Retomando o histórico
sobre o assunto, em 1988 foi reconhecido pela Constituição Brasileira o direito
de propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes quilombolas, através
do artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias: “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
(BRASIL, 2008). O reconhecimento de propriedade das terras quilombolas pela
Constituição de 1988 não foi suficiente para a efetiva regularização desses
territórios, e contestações contrárias às titulações eram fundamentadas na
falta de regulamentação no processo de demarcação e titulação dessas terras.
Mas, foi com a
publicação do decreto 4.887, no dia 20 de novembro de 2003 se estabeleceu a
forma de como proceder à demarcação e titulação do território quilombola. Da
década de 1980 até 2003 se desenrolaram anos de silêncio quanto a este assunto
e, apesar de haver milhares de comunidades espalhadas pelos estados
brasileiros, ainda há a impressão de inexistência ou de distancia das
comunidades, o que remete muitas pessoas à noção de quilombo do período
colonial.
Vários grupos
contrários aos direitos adquiridos pelas comunidades se manifestaram. O partido
Democratas (DEM) ajuizou em 2004 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) no Supremo Tribunal Federal pela publicação do
decreto 4.887. A ADIn é contrária ao critério de autoatribuição para a
identificação das comunidades remanescentes quilombolas, e o caso ainda aguarda
julgamento.
De acordo com Santos (2010),
o ano de 2007 ficou marcado pelo aumento dos conflitos no estado do Mato Grosso
do Sul entre as comunidades rurais quilombolas e
o Governo do Estado, Sindicato Rural de Dourados; as Prefeituras Municipais de
Nioaque, Dourados e Sonora; grandes proprietários de terras; e a Federação da
Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (FAMASUL).
A partir da definição
ultrapassada sobre o que é uma comunidade remanescente quilombola, criou-se uma
situação constrangedora para o Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso do
Sul (IHG-MS), que reforçou ainda mais a posição contrária ao reconhecimento das
comunidades quilombolas no estado de MS. Em 2008 o então presidente do IHS-MG
Hildebrando Campestrini exalou um parecer negando a existência de qualquer
formação de comunidades quilombolas no estado de Mato Grosso do Sul. O parecer
dizia o seguinte:
Considerando que o sul de Mato Grosso despontou no
cenário econômico brasileiro como área de produção pecuária, após as décadas de
1830/1840, quando a escravidão já se encontrava em processo gradativo de
desarticulação; Considerando que o território hoje sul-mato-grossense se
encontrava fora da rota de fuga dos escravos egressos dos centros econômicos
mais significativos à época do regime escravista (SP, MG e região norte de MT);
Considerando que havia, no último quartel do século XIX, forte empenho de
líderes pela libertação de escravos, a exemplo das Juntas de Emancipação nas
principais vilas e cidades do sul de Mato Grosso, com resultados positivos;
Considerando que, sobretudo após a Guerra da Tríplice Aliança, o número de
escravos no sul de Mato Grosso era de reduzido significado; Considerando que
não há documentos, nem ao menos indícios, que provem a existência, no atual
Mato Grosso do Sul, de quilombos, mesmo que tardios. Manifestam-se, por
unanimidade, no sentido de não reconhecer a presença de quaisquer núcleos
quilombolas remanescentes em nosso Estado. Campo Grande, 10 de setembro de 2008.
Hildebrando Campestrini – Presidente (SANTOS, 2010: p.20).
Como
é perceptível no Parecer Quilombola do IGH-MS, a visão sobre as comunidades
está presa em um passado colonial, como algo exótico, perdido e afastado da
noção de cidadão brasileiro. O parecer ganhou destaque na mídia local e teve
ampla recepção pelos produtores agropecuários, sendo largamente difundido pela
FAMASUL através da circular nº 041/2009, ao Secretário da Secretaria de Estado
de Meio Ambiente, das Cidades, do Planejamento, da Ciência e Tecnologia/SEMAC. Em
seu ofício a FAMASUL afirma a não existência de remanescentes quilombolas no
Mato Grosso do Sul.
O
Parecer Quilombola produzido pelo IHG-MS encara comunidades remanescentes como
aquele conceito da época imperial e deixa de perceber como bem lembra Amaral
Filho (2011) que os remanescentes de quilombolas surgem recriando um processo
identitário e não o repetindo. Recriando seus laços com a África, “eles passam
a se comportar no Pós-Colonial diaspórico como um grupo multicultural miscigenado
diferente de sua noção clássica” (AMARAL FILHO, 2011).
A
colonização, apesar de um processo extinto oficialmente, permanece enraizada
nos dias atuais, como fator excludente e marginalizador de determinados grupos
sociais. No caso de Mato Grosso do Sul, essa situação é facilmente identificada
quando se trata da garantia de direitos das populações indígenas e comunidades
quilombolas.
No
discurso da mestiçagem, baseado na ideia de um Brasil mestiço, onde o moreno é
o termo ideal de representação da população afro-brasileira, o termo negro deixa
de ser mencionado de forma positiva pela sociedade brasileira, pois a ideia mitológica
de democracia racial encontra suas bases no moreno. A troca de um termo por
outro não significou um tratamento respeitoso para a população negra, sua
história e suas memórias, e não resultou numa equidade nas oportunidades entre
todos no Brasil. Antes disso, a criação de um discurso de democracia racial
“contribuiu” para que se afundasse no silenciamento o racismo vivenciado no
Brasil, fortalecendo um discurso hipócrita e controverso.
É
importante entender porque é tão popular a utilização do termo moreno, quando
se refere à população afro-brasileira.
Uma breve análise na história de formação da identidade nacional, (ORTIZ,
2003) é possível perceber como foi a movimentação dos grandes intelectuais e
dirigentes nacionais para a formulação de teorias e projetos sobre um modelo
nação brasileira. Este modelo de nação era pensado para o futuro, um futuro que
através da miscigenação racial, se tornaria branco.
Mato
Grosso do Sul não fugiu aos moldes nacionais quanto à formação de uma identidade
regional baseada na falsa ideia de democracia racial e de branquidade. Este
modelo foi refletindo diretamente na invisibilidade dos remanescentes
quilombolas do Estado. Um exemplo, Campo Grande, que é conhecida como a cidade
morena, não possui menção alguma sobre a vida de camponeses e nem de
escravizados, em nenhum dos seus 14 museus (Santos, 2010: p. 31).
Não é possível que atualmente, dirigentes e
intelectuais ainda expressem noções sobre o que é ser remanescente quilombola
baseados em conceituações cristalizadas em um passado colonial. A ideia sobre ser
quilombola hoje ultrapassa a noção colonial e se aproxima muito mais de uma
ressignificação do caráter multicultural do quilombo surgido no território africano,
mas muito diferente da conceituação de quilombo feita pelo colonizador. E ainda,
não é possível permitir, que ideias como a do Parecer Quilombola, após a
criminalização do racismo em 1988, sejam formas de propagação de racismo sutil
através da negação da existência de comunidades quilombolas no estado.
A
afirmação do Parecer demonstra muito dos aspectos da invisibilidade social e
econômica da população negra brasileira. A população quilombola faz uso de
terras reconhecidas como patrimônio histórico pelo Estado Brasileiro, compartilhando
valores comuns, parentesco, práticas culturais. Devemos ultrapassar esse
entendimento vindo do período colonial que prejudica a existência e garantia de
direitos civis, econômicos, sociais e culturais
das comunidades remanescentes quilombolas no Brasil.
Referências
Bibliográficas
AMARAL
FILHO, N. C. Mídia e Quilombos na Amazônia. Relações Raciais no Brasil:
pesquisas contemporâneas. Org. Valter Roberto Silvério, Regina Pahim Pinto,
Fúlvia Rosemberg. São Paulo: Contexto, 2011.
SANTOS,
C. A. B. P dos. Fiéis descendentes redes-irmandades no pós-abolição entre as
comunidades negras rurais sul-mato-grossenses. Tese de Doutorado em
Antropologia Social. UNB, Brasília, 2010.
BRASIL,
Ministério Público Federal. Procuradoria Geral da Republica, 2 região.
Territórios Quilombolas e Constituição: A ADI 3.239 e a Constitucionalidade do
Decreto 4,887/03. Rio de Janeiro, 03 de março de 2008.