O Marco Civil da Internet, projeto de lei 2126/2011, resultou da
reação da sociedade brasileira a iniciativas legislativas que regulavam a
rede e os internautas unicamente sob a perspectiva do crime. Não é nada
raro que os avanços tecnológicos e a potencialidade da Internet sejam
encarados com desconfiança, levando a regulações que favorecem o
vigilantismo e a criminalização de condutas cotidianas na rede. Para
enfrentar essa concepção se fortaleceu a reivindicação por uma Carta de
Princípios da Internet – antes da tipificação penal, é fundamental
garantir direitos.
Inspirado nos Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil, aprovados em resolução do Comitê Gestor da Internet
no Brasil em 2009, o projeto de lei foi colocado em consulta pública
pelo Ministério da Justiça em plataforma online inovadora e
colaborativa. Foram recebidas mais de 2000 contribuições, consolidadas
na proposta final encaminhada ao Congresso Nacional em 2011. Já na
Câmara dos Deputados, sob a relatoria do Deputado Federal Alessandro
Molon, o projeto passou por outra consulta pública e uma série de
audiências públicas.
Em 2012, o Marco Civil foi pautado para votação mais de cinco vezes,
mas nenhuma delas se realizou devido à resistência especialmente das
empresas de telecomunicações e da indústria de direitos autorais. A
agitação não voltou da mesma forma em 2013 e durante vários meses o
projeto de lei esteve distante das prioridades do Legislativo e do
governo.
Porém, as revelações de espionagem feitas por Edward Snowden alteraram a
conjuntura e a Presidenta Dilma Rousseff passou a ver no Marco Civil
parte da resposta a essa situação, determinando urgência constitucional à
sua tramitação no mês de setembro. Neste regime, o projeto de lei passa
a trancar a pauta de votação da Casa Legislativa em que se encontra se
não for apreciado em 45 dias, o que acontecerá na Câmara dos Deputados a
partir do dia 28 de outubro. Depois da Câmara, o projeto vai ainda ao
Senado, também em regime de urgência.
As principais polêmicas e riscos em torno do projeto de lei são:
Neutralidade da rede: A última redação divulgada para o
art. 9º estabelece ao responsável pela transmissão, comutação ou
roteamento o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de
dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal
ou aplicativo, sendo admitidas exceções somente em razão de requisitos
técnicos e serviços de emergência a serem regulamentados posteriormente.
De forma a controlar o gerenciamento de tráfego, o artigo impede ainda
que tais empresas bloqueiem, monitorem, analisem ou fiscalizem o
conteúdo dos pacotes de dados. Esse é o principal alvo de ataque das
operadoras de telecomunicações, que querem alterar seu modelo de negócio
atual para poder oferecer planos de acesso à Internet diferenciados não
apenas por velocidade, mas pelo tipo de serviço ou conteúdo disponível.
Ao mesmo tempo, algumas propostas de emendas a esse artigo querem
deixar claro que ele não se opõe à prática de franquia de dados,
bastante comum na internet móvel. Ainda que isso seja discutível, a
questão fundamental é que o Marco Civil não deve servir à consagração de
modelos de negócios específicos das empresas, principalmente quando vêm
acompanhados de práticas abusivas – o que ocorre com a oferta de planos
“ilimitados” com baixas franquias e consideráveis reduções da
velocidade de navegação após atingido o limite de dados.
Privacidade: Outro incômodo às operadoras de
telecomunicações. O Marco Civil proíbe que elas guardem os dados de
navegação dos usuários, estabelecendo apenas a guarda dos registros de
conexão (número IP, horário da conexão e desconexão) por um ano. Essa
redação impede, portanto, a comercialização pelas operadoras das
preferências dos consumidores na Internet a potenciais anunciantes,
assim como fazem os provedores de aplicações de Internet (ex: Google,
Facebook e outros sites). Para estes, o projeto prevê alguns parâmetros
na utilização das informações dos usuários que os acessarem, mas permite
a guarda de dados. Se é certo que o Brasil precisará avançar nesses
parâmetros mesmo após a aprovação do Marco Civil, é certo também que o
projeto acerta ao diferenciar o provedor de conexão dos provedores de
aplicações de Internet. Estes têm conhecimento do que o usuário faz ao
acessar o seu site; aqueles têm condições de traçar o mapa completo de
navegação de cada um de seus clientes.
Responsabilidade de intermediários: Neste ponto o
problema é a indústria de direitos autorais. A versão do Marco Civil
encaminhada pelo governo ao Congresso Nacional continha a regra geral de
que o provedor de aplicações de Internet só poderia ser
responsabilizado por conteúdo de terceiro se descumprisse ordem judicial
determinando a retirada ou bloqueio. Contudo, o lobby dos direitos
autorais, em especial das Organizações Globo (ligadas à maior emissora
de televisão do país), conseguiu inserir no art. 15 um parágrafo que
exclui a aplicação dessa regra geral caso se trate de infração a
direitos autorais ou conexos. O novo parágrafo agride o direito dos
usuários ao devido processo legal frente a pedidos de retirada de
conteúdos considerados pelos requerentes - e não pela Justiça -
infringentes aos direitos autorais, abrindo exceção que não deveria ser
objeto do Marco Civil. Isso pode prejudicar a realização de um dos
princípios fundamentais do projeto de lei - a liberdade de expressão e
relacionados direitos constitucionais de acesso ao conhecimento e à
cultura.
Armazenamento de dados no Brasil: Tendo em vista as
denúncias de espionagem, o governo pretende incluir no projeto de lei a
obrigação de guarda e armazenamento no país dos registros e dados
referentes a pessoas localizadas no Brasil. Embora possa facilitar a
aplicação da legislação nacional à proteção dos dados de brasileiros e
estimular a instalação de data centers no país, a medida não serve ao
combate efetivo da espionagem, considerando que tais informações podem
ser enviadas ao país de origem da empresa, além de serem muito mais
complexos e disseminados os mecanismos de vigilância. Por outro lado,
tal medida pode levar à uma segmentação prejudicial da rede, entre
outras questões. Assim, as soluções devem ser construídas pelas vias
diplomáticas e técnicas, sendo relevante que o próprio Brasil avance nas
suas regras de proteção à privacidade e dados pessoais frente ao
governo e às empresas.
Desde a sua formulação até seu contexto atual, o Marco Civil da
Internet é exemplar no que se refere aos desafios de garantir princípios
e direitos aos usuários no uso da rede. É preciso mobilização da
sociedade e priorização do governo em suas políticas públicas para que
realmente se estabeleça uma regulação democrática da Internet, que a
conceba como ambiente de direitos e não somente de negócios ou de
vigilância. A disputa está a pleno vapor no Brasil e estamos atentos
para que as notícias sejam boas.
Para acessar o último relatório divulgado do Marco Civil (versão em português), clique aqui. O projeto de lei 2126/2011 foi apensado ao PL 5403/2001.
Fonte: Idec
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