Vandeck Santiago, Diário de Pernambuco
O repórter que testemunhou 27 golpes e revoluções, que cobriu
guerras, epidemias e crises de fome na África e América do Sul, que viu o
despertar do islamismo e a derrocada da União Soviética, que era
considerado por Gabriel García Márquez “um verdadeiro mestre” e que foi o
mais célebre correspondente internacional do século 20, o que dizia ele
sobre que tipo de gente deveria exercer o jornalismo? “Pessoas más não
podem ser bons jornalistas”, afirmava Ryszard Kapuscinski, o repórter de
quem estamos falando. “Só uma boa pessoa se esforça para compreender os
outros, suas intenções, sua fé, seus interesses, suas dificuldades,
suas tragédias”.
Agora, peguemos este raciocínio de Kapuscinski, um polonês falecido
em 2007, aos 75 anos, e nos transportemos para um campo de refugiados na
Hungria, na fronteira com a Sérvia. De repente um grupo de pessoas
desesperadas corre para tentar furar uma barreira policial e entrar na
Hungria. Uma das pessoas é um pai aparentando uns 60 anos, carregando
uma sacola nas mãos, uma bolsa nas costas e um filho nos braços. O que
você faria se estivesse lá e este homem passasse correndo ao seu lado?
A jornalista húngara Petra Laszlo fez o inimaginável: estendeu o pé
na frente do homem, fazendo-o tropeçar e cair com o filho (foto).
Momentos antes, no mesmo local, ela já chutara uma menina. É um dos mais
infames atos já cometidos por um jornalista no exercício da profissão.
Aconteceu anteontem, em mais um episódio dramático da crise migratória
que bate às portas da Europa. Petra Laszlo foi demitida no mesmo dia;
ela trabalhava para uma emissora de TV ligada à extrema-direita. Dois
partidos húngaros prometeram entrar com ação na justiça contra ela.
A prática do jornalismo ajuda a controlar emoções durante a cobertura
dos fatos – o repórter está ali para narrar os acontecimentos, não para
participar deles. Petra Laszlo quebrou esta regra da pior forma
possível, chutando uma menina e derrubando um pai com uma criança nos
braços. Ninguém sabe com exatidão a razão do seu gesto; é plausível
supor que ela odeie os migrantes, e os veja como ameaça. A Hungria tem
um governo conservador, apoiado pela extrema-direita. Pesquisa recente
apontou que 66% da população acha que os refugiados “ameaçam a
estabilidade do país”. Nesse quadro, é possível ver o espaço para a
escalada do ódio – mas é inaceitável que uma jornalista, no exercício da
profissão, se deixe tomar pela paixão e faça o que ela fez.
Se há um consolo nisso tudo é a constatação de que a prática
jornalística em casos de crises, guerras e calamidades é completamente
diferente. Na semana passada, por exemplo, tivemos o e
pisódio do menino sírio Aylan Kurdi, que morreu afogado na Turquia.
A foto dele, de autoria da fotógrafa Nilüfer Demir, tornou-se imagem
símbolo da crise migratória. “Naquele momento, quando vi Aylan Kurdi, eu
fiquei petrificada”, disse Nilüfer Demir. “Ele estava deitado de
barriga para baixo sem vida na areia, de camiseta vermelha e com seu
short azul escuro. A única coisa que eu poderia fazer era tornar seu
clamor ouvido. Naquele momento, eu pensei que poderia fazer isso ao
acionar minha câmera e fazer sua foto”.
SAIBA MAIS: 15 ilustrações em homenagem ao menino Aylan Kurdi
No espaço de uma semana, tivemos dois exemplos opostos na cobertura
da mesma crise migratória. Uma e outra mostram que é impossível fazer
bom jornalismo sem motivações éticas, como mostra Ryszard Kapuscinski,
no livro Os cínicos não servem para este ofício: conversas sobre o bom
jornalismo. Nos dois casos tivemos crianças em destaque, e sempre no
papel de vítimas. Novamente vale a pena ouvir Kapuscinski. “Se querem
seguir a carreira, vocês não podem ignorar os pobres: representam 80% da
população do planeta. As mais desafortunadas são as crianças”, disse
ele em orientação a estudantes de jornalismo. “De todas as imundícies do
mundo, essa é a que mais me ofende”.
Fonte: Pragmatismo Político
acesse o site: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/09/pessoas-mas-nao-sao-bons-jornalistas.html